sexta-feira, 15 de abril de 2016

Impeachment: mirabolante suposta solução


Em meio às discussões acerca da legitimidade do processo de impeachment contra a presidente Dilma, isto é, se o argumento jurídico é ou não válido, surgem os apoiadores do impeachment como solução para as crises que afetam o país. Longe de estarem pautados na legalidade, atêm-se aos possíveis efeitos práticos da saída de Dilma, como se estes pudessem justificar o processo. Em suas avaliações simplistas, individualizam diversas mazelas nacionais na figura da presidente, ignorando raízes mais profundas de cada questão. Porém, tão certos que estão de si, se põem dispostos a atropelar democracia e direito em prol de um "bem maior"; no entanto, distante de qualquer reforma significativa, defendem uma medida estapafúrdia que visa mais sanar a própria sede de mudança que prover alguma solução relevante (além de, frise-se, passar por cima de processos democráticos). Se o impeachment se concretizar, não só os problemas continuarão, nosso sistema político seguirá danificado pelo acirramento do revanchismo e enfraquecimento das instituições. Perguntará então o leitor: "se esta não é a solução, então qual seria?" Isto, caro leitor, é o que quero discutir neste post. Adianto, porém, que ela não é simples, nem certa e nem fácil. Mas deveria haver nisso alguma surpresa?

Não haverá milagre no pós-impeachment

Direi sem rodeios: se você considera o impeachment uma solução para os problemas do país você está enganado. Tão enganado quanto alguém que pensasse bastar 4 anos de governo para elevar o Brasil ao patamar do primeiro mundo. O motivo é simples: muitas das nossas questões mais atuais são fruto de longos processos históricos, cujas origens remontam aos tempos de Brasil Colônia, e, infelizmente, tais questões não serão resolvidas no curto prazo. Temos, por exemplo, uma intensa desigualdade social, uma das maiores do mundo, marca de nossa colonização, tendo sido posteriormente acentuada pela cultura escravagista. Temos, ainda, grande parcela da população em situação de pobreza. Importa observar que esta característica não deriva imediatamente da desigualdade, pois poder-se-ia ter uma e não ambas, porém nosso PIB per capta (a soma das riquezas produzidas dividida pela população), bem inferior quando em comparação ao dos países considerados desenvolvidos, sugere que a desigualdade aqui necessariamente implica pobreza. Para agravar o quadro, a qualidade da educação é baixa, e pior ainda para estudantes oriundos das famílias mais pobres, indicando fortes entraves à mobilidade social no país. Mais uma herança histórica, dado que a educação de qualidade sempre foi privilégio dos mais abastados. Soma-se a isso tudo a dificuldade em acessar direitos básicos como saúde, habitação e segurança, todos previstos na Constituição.

Não há atalhos. Sanar cada um destes problemas exige anos de trabalho constante. E, mesmo que possa não parecer neste momento de turbulências, muitas conquistas foram alcançadas ao longo desta e da última década. Eis alguns exemplos: embora continue alta, houve significativa redução da desigualdade, apontada por relatório da ONU e expressa pela queda da pontuação no coeficiente de Gini; semelhante caso se aplica à pobreza: observam-se importantes vitórias na erradicação da miséria, porém há ainda um longo caminho a percorrer; no concernente à educação, vê-se progredir o acesso e a taxa de escolarização, apesar do ainda baixo desempenho no Programa Internacional de Avaliação de Alunos, fatos destacados em relatório da OCDE; estes avanços terminam por refletir na expressiva melhora do IDH, apesar de ainda distante do ideal. São todas mudanças graduais e em curso, cujas tendências apontam para um futuro melhor que o atual. Ao mostrar estes dados, porém, não intenciono defender o governo. Tenho muitas críticas, mas resguardo meu direito de criticá-lo e ainda assim apoiar sua permanência. Apenas almejo apontar isto: a crença de que a troca de governo catapultaria estes indicadores é equivocada, para dizer o mínimo. Num cenário otimista, eles continuariam a progredir tão gradualmente quanto agora; num cenário muito otimista a melhora é ligeiramente mais rápida, mas sempre gradual; num cenário realista ou pessimista, estagnam ou até retrocedem. Definitivamente não há cenário em que ocorra um salto brusco dos dados.

Sim, talvez um impeachment fizesse cair o preço do dólar e o melhorar o desempenho da bolsa de valores, ambos por vezes usados como argumento para a saída da presidente, mas estes são o tempo todo alvo de especulações, tornando difícil prever o comportamento. Além do que, quais as garantias de que toda esta especulação resultará em emprego e renda? No mais, não obstante a importância de um dólar baixo e do desempenho da bolsa na economia, me pergunto qual futuro estaremos construindo se levarmos o governo a pautar suas ações apenas na melhoria destes indicadores, como se, por si só, pudessem prover todo o resto. É provável que, se desmantelássemos o SUS, privatizássemos todo o setor público, e se desmantelássemos também a previdência, acabando com os programas de assistência social, e, por fim, rasgássemos de vez a CLT, como sugerem que façamos os libertários, no dia seguinte o dólar despencaria, a bolsa subiria como nunca e o noticiário nacional e internacional elogiaria o esplêndido desempenho econômico do Brasil. Entretanto, estaríamos distribuindo renda? Estaria a pobreza caindo? E, se sim, o quão rápido? Para se ter ideia destas resposta, podemos comparar, no que concerne aos números da pobreza, os desempenhos de Brasil e Chile, este último conhecido por aplicar a economia de livre mercado desde o início da década de 90. Enquanto no Brasil o percentual de pobres é 7,3%, o Chile tem 14,4%. Quanto à extrema pobreza, aqui temos 2,8%; no Chile há 4,5%. É sempre bom lembrar: bons indicadores econômicos podem coexistir com elevados níveis de miséria.

Os reais problemas do Brasil

Voltemos ao ponto: a meu ver, os verdadeiros entraves do Brasil são democráticos e deveria ser por mais democracia a nossa reivindicação. Este seria um primeiro passo para um país melhor. Mas, como disse no início, não é uma solução simples, nem certa e nem fácil. Para começar, deveria partir justamente daqueles para qual ela não interessa. A questão é essa: nossos políticos não estão sob controle do povo, como haveria de ser, e tampouco querem estar. Por todo o país, vemos governos arbitrários, atuando em causas de particulares; vemos pequenos grupos favorecidos enquanto a uma grande massa é dado um mínimo para sobreviver; vemos legisladores buscando seus próprios interesses e de seus pares em projetos de lei; vemos a falta de transparência no uso dos recursos aliada ao descaso com o patrimônio público; vemos ações planejadas para coincidir com tempos de mandato, sem qualquer plano de longo prazo que pudesse trazer benefícios duradouros, de modo que estes não sejam associados a adversários políticos; vemos a educação relegada a segundo plano, para que o povo, ignorante, nada saiba, nada veja, nada reivindique; vemos ataques constantes à laicidade do Estado, tentando fazer todos se curvarem ante à crença religiosa de uns; vemos o descaso com a saúde pública, que naturaliza as mortes por falta de atendimento, falta de materiais, falta de leitos, como se a vida do pobre valesse menos porque não tem condições de pagar por ela; vemos a intolerância e o ódio contra minorias pregado em pleno Congresso Nacional, sem qualquer pudor. E, reparem, todos estes desmandos dentro da mais absoluta legalidade. Caro leitor, a corrupção deve ser combatida, não se está dizendo que não, mas ela está longe de ser nosso único problema, como fazem parecer uns em benefício próprio.

E, infelizmente, a carência democrática não se limita ao sistema político, pois com democracia não me refiro apenas à eleição dos representantes, como sugere o senso comum: pressupõe também proteção dos direitos individuais contra a violência do Estado. Vivemos num constante Estado de Polícia, onde conceitos como "presunção de inocência", "in dubio pro reu" e "devido processo legal" são meros contos de fadas narrados a estudantes de direito; ao final, privilégio de poucos. A realidade é a das prisões ilegais, da alta letalidade da polícia, das repressões violentas, da justiça punitivista, cujas arbitrariedades só ganham repercussão quando os alvos usuais (negros, pobres, moradores da periferia) não são os atingidos. Mesmo que se trate de grande parcela da população, simplesmente não interessa aos nosso atuais governantes e legisladores garantir tais proteções. Eles já têm suas próprias pautas para cuidar. E com isso vão-se mais vidas todos os dias, encerradas abruptamente ou jogadas no ostracismo penal.

Por todas estas razões, penso o impeachment como um atraso de proporções colossais. Vejo-o como forma de escusar o Congresso das reformas tão necessárias para o país quanto indesejadas pelos parlamentares, em especial a reforma política, uma que trouxesse maior poder ao povo e menos às oligarquias e aos grupos de forte poderio econômico (esta, sim, seria uma solução). Vejo-o também enfraquecer a democracia, justamente nossa principal falha, pois retira legitimidade da vitória nas urnas. Deste modo, corre-se o risco da banalização, que fará com que cada governante, daqui pra frente, quando enfrentar queda de popularidade, tenha de enfrentar um desgastante processo de impeachment, independente de bases legais para tal. Por fim, acirra disputas num momento que pede união em causas comuns.

Não entrarei aqui na polêmica do argumento jurídico, mas creio que a própria falta de consenso entre juristas deveria ser suficiente para ligarmos o sinal de alerta para um erro grave que possamos estar cometendo ao incentivar parlamentares oposicionistas a seguir adiante. Um erro irreversível que trará consequências para a política nacional pelas próximas décadas.

De fato, como diria Tom Jobim, "o Brasil não é para principiantes".

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Visões sobre mídia e golpe


Desde as acirradas eleições presidenciais de 2014, vemos uma intensa disputa ideológica ocorrer em nossa terra. Ela está nos protestos, no Congresso, entre amigos (que já não se aturam, tamanhas as divergências de opinião) e incessantemente manifesta nas redes sociais online. Num momento tão delicado em que pequenos pedaços de informação têm potencial de favorecer qualquer ponto de vista, é essencial pensar o papel que a mídia ocupa no conflito, em especial as grandes emissoras de televisão, dada a repercussão maior de seus conteúdos.

Sobre este tópico, vejo com frequência o uso do termo “mídia golpista”, como se cada reportagem veiculada tivesse por objetivo guiar a população a pensar de certo modo, a fim de facilitar ou mesmo possibilitar determinados eventos políticos, como, por exemplo, o impeachment de um presidente ou um golpe de Estado. Talvez seja esta uma visão hiperbólica ou acalorada, mas não totalmente desprovida de razão. Sabe-se que em outro momento de nossa história isto ocorreu de fato: a tomada do poder pelos militares em 1964 contou com o apoio aberto de grandes organizações de comunicação em massa, tal como propõe a ideia mais radical do termo "golpe" aqui em discussão. Penso, porém, que os tempos sejam outros e que estas marcas tenham ficado no século XX. No entanto, considero por demasiado ingênua a noção contrária: de uma mídia isenta, imparcial, que apenas relata fatos.

Acertadamente, argumentaria o sociólogo francês René Lourau, um dos precursores da Análise Institucional francesa, dizendo ser impossível a imparcialidade, seja na ciência, na justiça, na educação. Em se tratando de jornalismo, o próprio ato de reportar determinado tema, e não outro, já diz de uma escolha que não é isenta. As pessoas entrevistadas, as palavras que serão incluídas ou cortadas da matéria, as imagens que irão ao ar, a chamada que o âncora usará para a notícia, a sequência de relatos... São todas escolhas, e em todas há alguém que escolhe. Pode ser um editor-chefe ou uma equipe, pode ou não passar por um crivo, mas em todo caso há noções muito específicas daquilo que deve e não deve ser veiculado, mesmo nos jornais tidos como “isentos”, caso dos principais jornais da televisão.
Por trás desta suposta isenção há valores, visões de mundo, ideias sobre certo e errado e, principalmente, ideias sobre aquilo que merece ou não ir ao ar. Portanto, a morte de um preso devido às condições decadentes de nosso sistema carcerário pode ser menos interessante que uma reportagem especial sobre como vivem os políticos presos em operações da Polícia Federal. Ou então, a péssima condição de trabalho de policiais perde relevância frente às imagens de assaltos a transeuntes numa movimentada capital. Frases soltas de investigados em uma operação em curso têm prioridade ante novas políticas públicas com potencial de atingir centenas de milhares. Ou ainda, a elevação positiva de importantes indicadores é ofuscada pela mera menção à palavra impeachment no Plenário do Congresso.
E sobre notícias tendo impeachment como tema, vejo-as deste modo: para o bem ou para o mal, o impeachment seria sem dúvida um acontecimento marcante em nossa história, e qual não seria o editorial de grande porte a querer noticiar evento de tamanha importância em seus mínimos detalhes, dos fatos antecessores aos sucessores? É justamente o que tem sido feito: a lente dos noticiários amplia seu foco sobre cada pequeno fato relacionado ao impeachment, criando um espetáculo televisivo e uma audiência em expectativa, tal como se uma série acompanhasse. Sob a égide da suposta imparcialidade, monta-se um cenário onde tal fenômeno político é aguardado, desejado e até tido como natural, sem que haja espaço para discutir suas consequências, soluções outras, nem mesmo seus argumentos base.

Embora não a trate assim, penso ser a esta imposição midiática que alguns chamam de golpe. Pessoalmente, evito o termo, por soar orquestrado, intencional, mas talvez o ingênuo, no final das contas, seja eu. Deixo esta reflexão para o leitor.